Morre Joseph Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI aos 95 anos
Por Edmilson Pereira - Em 2 anos atrás 447
O Papa emérito Bento XVI, que vivia praticamente em clausura desde que renunciou à liderança da Igreja Católica em 2013, morreu neste sábado (31) aos 95 anos no convento onde vivia no Vaticano. Por décadas porta-voz do conservadorismo na Santa Sé, Bento tornou-se a primeira pessoa a abrir mão do Papado em quase seis séculos, admitindo não ter forças para lidar com os escândalos de corrupção e pedofilia em uma instituição cujos dogmas não raramente batem de frente com a modernidade.
Em 11 de fevereiro de 2013, Bento causou um terremoto na Igreja Católica quando disse que abandonaria o Pontificado após sete anos e meio por não se considerar mais apto para exercer o cargo. A inesperada renúncia e seu recolhimento ao mosteiro Mater Ecclesiae forçaram a comunidade religiosa a navegar por um mundo com dois Papas com estilos e visões diferentes sobre como a Igreja deve ser conduzida.
Sete anos e meio antes, quando a fumaça branca saiu da chaminé da Basílica de São Pedro para anunciá-lo como Papa, o cardeal alemão Joseph Aloisius Ratzinger parecia uma escolha óbvia: era o decano do Colégio de Cardeais e um dos colaboradores mais próximos de João Paulo II, a quem sucederia. Após o longo e marcante Papado do polonês, prevaleceu o nome do homem que por quase 25 anos foi chefe da Congregação para a Doutrina da Fé e liderava a ala conservadora do conclave.
Especialistas divergem se Ratzinger, entretanto, gostaria de vencer a eleição. O religioso alemão era mais afeito ao discurso acadêmico do que a pronunciamentos públicos — sisudez ressaltada pelo carisma de seu antecessor e a popularidade e as reformas promovidas por seu sucessor , o argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco.
Nascido em Marktl am Inn, na Alemanha, em 16 de abril de 1927, Joseph Ratzinger teve uma trajetória similar à de outros jovens do país na sua época: integrou a Juventude Hitlerista e, depois, lutou na Segunda Guerra Mundial, mas desertou do Exército. Ordenou-se padre na década de 1950, e logo depois o doutorado em Teologia.
Foi um conselheiro teológico considerado liberal no Concílio Vaticano II (1962-1965), que efetuou reformas profundas nos rituais e nas pastorais católicas, mas assumiu uma linha cada vez mais conservadora nos anos seguintes, durante os protestos de 1968. Nomeado cardeal de Munique em 1977, assumiu apenas quatro anos depois o comando do escritório de doutrina da Santa Sé, já sob o comando de João Paulo II, em que lutou contra o que chamou, em homilias, de “doutrinas” movidas por “correntes ideológicas”.
Seu primeiro alvo foi a Teologia da Libertação, uma corrente nascida na América Latina que pregava a aproximação da Igreja e do Evangelho aos mais pobres. Ratzinger acusou seus líderes de deturpar os ensinamentos cristãos, manipulando seus fiéis com teses marxistas. Os mentores do movimento, como o teólogo brasileiro Leonardo Boff, foram punidos com o silêncio obsequioso — a proibição de falar — e deposição da cátedra.
Devido à influência de seu discurso no pontificado de João Paulo II, Ratzinger ganhou apelidos como “rotweiller de Deus” e, na Alemanha, de cardeal “panzer” — uma abreviação do substantivo panzerkampfwagen, que significa carro de combate. Ainda assim, os adversários consideravam o religioso que falava ao menos oito idiomas como um homem afável e culto.
Ofuscado por escândalos
Durante seus anos no escritório de doutrinas, Ratzinger produziu documentos e fez comentários reafirmando proibições como o uso de métodos contraceptivos, eutanásia, homossexualidade e aborto, por exemplo. Já como Papa, tentou em vão conter escândalos de corrupção e de sacerdotes pedófilos — muitos acobertados por bispos e herdados de décadas anteriores.
Em janeiro deste ano, um documento divulgado pelas arquidioceses de Munique e Freising compilava provas de 497 casos de abuso cometidos entre 1945 e 2019 por ao menos 235 religiosos e acusava Ratzinger de ter conhecimento de quatro desses casos, mas não fazer nada sobre quando era cardeal de Munique.
O Papa emérito negou categoricamente as alegações em uma carta na qual também pedia perdão às vítimas de abuso sexual na Igreja. Na correspondência, disse sentir “profunda vergonha e dor” pelos “abusos e erros que ocorreram em todos esses lugares diferentes durante o tempo do meu mandato”.
Bento esteve no Brasil como Papa apenas uma vez, em maio de 2007, quando participou da Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho em Aparecida do Norte. Antes esteve em São Paulo, onde se encontrou com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, participou de encontros com jovens, visitou dependentes químicos e rezou a missa de canonização de Frei Galvão para mais de 1 milhão de fiéis no Campo de Marte.
Com pouca projeção internacional no cenário político, também cometeu gafes. Ao visitar o campo de concentração de Auschwitz, em 2006, decepcionou os judeus ao não mencionar o antissemitismo cristão. Em 2009, suspendeu a excomunhão de um religioso, Richard Williamson, que havia negado o Holocausto em uma entrevista. Em 2010, diante de suas notórias críticas ao casamento LGBTIQA+, viu um “beijaço” de 200 homossexuais ao passar com o papamóvel em Barcelona.
A maior crise de seu Pontificado, entretanto, foi o Vatileaks, quando seu mordomo, Paolo Gabriele, divulgou documentos sigilosos que traziam informações sobre corrupção, má gestão do Banco do Vaticano e conflitos por poder na Cúria. Estima-se que o conteúdo do relatório teria estimulado a decisão de Bento XVI de renunciar. O Papa, então com 85 anos, recolhia-se cada vez mais e afirmava não ter mais condições físicas de comandar o Vaticano.
Bento XVI foi o quarto Papa da História da Igreja a renunciar — antes dele, apenas Ponciano, em 235, Celestino V, em 1294, e Gregório XII, em 1415, deixaram o Trono de São Pedro. A decisão abriu caminho para que o Conselho de Cardeais optasse por inovar na sucessão: no moderado Francisco, elegeu o primeiro jesuíta e latino-americano a comandar a Santa Sé.
Os dois Papas
O argentino faz reformas graduais na Igreja, buscando-a tornar mais diversa do ponto de vista geográfico e menos conservadora. Apesar das divergências, os dois mantinham uma boa e cordial relação, com diálogos e visitas ficcionalizadas no filme “Dois Papas”, do diretor Fernando Meirelles, que rendeu aos atores Anthony Hopkins e Jonathan Pryce indicações ao Oscar.
Os obstáculos não foram inexistentes: figuras mais conservadoras resistentes às reformas de Francisco resistiram a reconhecê-lo e respeitá-lo. No início, teólogos respeitados defendiam que Bento passasse a ser chamado de bispo emérito de Roma, mas o alemão insistiu em manter o título de Papa emérito, alimentando temores de que a liderança dupla rachasse a Igreja.
Em janeiro de 2019, Bento divulgou uma carta culpando os escândalos de abuso sexual, entre outros pontos, a “ideias teológicas perigosamente progressistas”, sem citar Francisco. O alemão, contudo, tomou a opção deliberada de evitar choques com o Papa atual.
Em janeiro de 2020, por exemplo, pediu para que seu nome fosse removido de um livro que gerou polêmica ao criticar a flexibilização do celibato de padres, iniciativa aventada por Francisco no Sínodo da Amazônia, como uma maneira de ampliar a presença de sacerdotes na região, que tem registrado o crescimento de grupos evangélicos.
A saúde de Bento XVI estava debilitada havia anos, e ele aparentava maior fragilidade a cada rara aparição pública que fazia — relatos indicam, no entanto, que suas capacidades mentais continuavam agudas até o fim. Uma de suas últimas fotografias foi tirada no dia 1º de dezembro de 2022, quando se encontrou com os ganhadores de um prêmio para teólogos batizado em sua homenagem.
Os primeiros sinais de que houve um agravamento de seu quadro vieram na manhã de quarta, quando o Papa Francisco disse que seu antecessor estava “muito doente” e pediu orações para que fosse confortado por Deus “até o fim”. Pouco depois, o Vaticano confirmou a piora.
Fonte: Jornal O Globo