por Aluízio Bezerra - 7 anos atrás
Tribunais de Justiça do Brasil começam a suspender passaporte de devedor
Discutido e rediscutido, o novo Código de Processo Civil (CPC) continua sendo alvo de interpretações divergentes. São muitas as polêmicas surgidas com a edição da norma que rege o processo civil no Brasil, dentre elas a possibilidade de magistrados determinarem a suspensão da carteira de motorista e do passaporte de devedores.
A discussão, que decorre de um artigo que permite ao juiz aplicar “todas as medidas” que assegurem o cumprimento da ordem judicial, começou a chegar agora aos tribunais de justiça. Um levantamento feito pelo JOTA encontrou diversas decisões desfavoráveis aos credores, e pelo menos duas em que os desembargadores aceitaram o pedido de suspensão.
O assunto, de acordo com juízes e advogados, só deve ser resolvido com o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal (STF), o que ainda não tem data para acontecer. As Cortes deverão definir se a metodologia é válida por coagir o devedor a pagar o que deve ou se a suspensão fere direitos fundamentais, como o direito de ir e vir.
Devedores profissionais
A polêmica a ser resolvida pelo Judiciário envolve o artigo 139 do CPC, que confere ao juiz a possibilidade de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”. Com base no dispositivo, credores passaram a requerer a suspensão de Carteiras Nacionais de Habilitação (CNHs), passaportes e até créditos de programas como o Nota Fiscal Paulista de devedores.
O desembargador Marcos Alaor, do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO), diz que o CPC antigo, de 1973, já previa que magistrados poderiam aplicar métodos para induzir o pagamento de dívidas. O CPC de 2015, para ele, deixa a possibilidade mais claro, e por isso surgiram as dúvidas.
“O CPC [de 2015] é uma lei que ainda não está experimentada em todas as suas dimensões. Tem muita coisa nova que vai criar polêmica”, diz o magistrado, que presidiu a comissão da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) que tratou dos assuntos referentes ao projeto do novo CPC no Congresso.
No caso do artigo 139, alguns advogados consideram que o dispositivo possibilitaria o emprego de mecanismos “atípicos” de cobrança. É o caso do advogado Thiago Rodovalho, associado do Instituto dos Advogados de São Paulo e professor de Processo Civil na PUC -Campinas. Ele entende que a suspensão da CNH e do passaporte é possível, por exemplo, de devedores que ocultam bens.
“É a circunstância em que o devedor mantém um padrão de vida elevado, mas quando se busca não tem bens em seu nome”, explica.
A argumentação já foi acolhida em pelo menos dois casos. Um deles, analisado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), envolve uma mulher que vendeu, em março de 2012, bois a um valor de R$ 177 mil, recebendo apenas R$ 61,7 mil do comprador. De acordo com a ação, foram feitas tentativas de bloqueio de bens, mas que não foram suficientes para sanar a dívida.
Segundo a relatora do caso, desembargadora Themis de Almeida Furquim Cortes, o devedor apresenta um padrão de vida elevado, já que realiza o melhoramento genético de gado e, à época da operação tratada no processo, morava em um edifício de alto padrão em Salvador (BA). Para a magistrada, em situações como essa é possível a suspensão da CNH e do passaporte.
“Não se tratam de mecanismos destinados aos devedores que não têm mais condições para honrar qualquer compromisso financeiro ou os que passam por dificuldades financeiras momentâneas e podem atrasar alguns pagamentos, mas sim àqueles chamados ‘devedores profissionais’, que conseguem blindar seu patrimônio contra os credores com o objetivo de não serem obrigados a pagar os débitos”, afirmou na decisão.
De acordo com o advogado Guilherme Regio Pegoraro, do escritório Guilherme Pegoraro Advogados Associados, que representa a vendedora que consta como parte no processo, o credor “não seria afetado” por um pedido de penhora online.
“Provamos através de pesquisas em tribunais que ele tem uma série de outros processos de obrigações que não pagou”, diz.
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), a suspensão da carteira de motorista atingiu um pai que deixou de pagar pensão alimentícia aos filhos. O caso teve como relator o desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, que considerou que a medida não fere o direito de ir e vir do devedor.
“O paciente insofismavelmente segue podendo ir e vir, desde que o faça a pé, de carona ou de transporte público. Esposar compreensão em sentido distinto significa dizer que os não-habilitados a dirigir não podem ir e vir, inverdade absoluta”, pontuou, na decisão.
Direitos fundamentais
As decisões favoráveis, porém, não são unanimidade em todos os Estados brasileiros. Uma pesquisa de jurisprudência revela que, em alguns tribunais de justiça, os desembargadores têm entendido que a suspensão fere direitos fundamentais e pode não ser efetiva.
É o caso de um processo analisado em abril pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), e que tinha como parte a dona de um estabelecimento condenado a pagar uma indenização. De acordo com a ação, a parcela seria paga a um homem agredido por seguranças do local.
A desembargadora Marcia Dalla Déa Barone, que relatou o caso, destacou a demora no pagamento da indenização, mas entendeu que a suspensão do passaporte feriria o direito de ir e vir da dona do estabelecimento.
“O pleito para a cassação do passaporte da devedora não se mostra relevante no caso em testilha, tendo em vista que os direitos fundamentais da cidadã devem ser respeitados”, ponderou.
Decisão similar foi proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), que em março reverteu uma decisão de primeira instância que determinava a suspensão.
A desembargadora Fátima Rafael, relatora do processo, considerou que “é o patrimônio, e não a pessoa do devedor, que deve responder pela dívida”, afirmando ainda que o credor não é prejudicado pela suspensão do processo de cobrança até que sejam encontrados bens do devedor.
A tese de impossibilidade de suspensão também encontra seguidores entre os advogados. Para o advogado Luciano Godoy, sócio do PVG Advogados e professor da FGV Direito em São Paulo, as medidas que visem o pagamento de dívidas devem estar relacionadas ao objeto da cobrança, e não à pessoa física.
“[Decisões favoráveis ao bloqueio] misturam liberdade com patrimônio, e usam o cerceamento de liberdade como uma forma de ameaça”, diz.
Godoy defende que o artigo 139 do CPC permite apenas medidas relacionadas ao patrimônio, como imóveis, ações ou valores em espécie.
Processos tratados na matéria:
TJ-PR: 0041463- 42.2016.8.16.0000
TJ-RS: 0431358-49.2016.8.21.7000
TJ-SP: 2226472-64.2016.8.26.0000
TJ-DFT: 0701964-59.2016.8.07.0000