Pesquisa busca entender porque há idosos centenários que não tem sequer sintomas enquanto jovens morrem de Covid
Por Edmilson Pereira - Em 4 anos atrás 728
Parouhi Darakjian Kouyoumdjian teve dengue e Covid-19 simultaneamente, mas apresentou sintomas mais condizentes com uma forma leve da primeira. E se recuperou bem. Ainda mais raro do que o nome da senhora Parouhi foi seu caso surpreendente de co-infecção, principalmente se for levado em conta que ela tem um século de vida.
Ela adoeceu em agosto passado, mas seu caso continua a interessar cientistas. Eles buscam em suas células e genes pistas para combater a pandemia. A senhora Parouhi, de São José do Rio Preto (SP), está entre os centenários estudados pela Universidade de São Paulo (USP) para identificar por que algumas pessoas aparentemente frágeis são infectadas e sequer desenvolvem sintomas, e outras, jovens e fortes, morrem de Covid-19, sem nenhum fator de risco conhecido e mesmo que tenham acesso a bom atendimento.
São nesses extremos da pandemia que a ciência busca descobrir os pontos fracos do coronavírus. O Sars-Cov-2 é um assassino em massa, mas deixa flancos expostos, visíveis mais facilmente nos casos de resistência ou extrema suscetibilidade.
A pesquisa, liderada pela geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco da USP, investiga genes que podem tornar as pessoas mais resistentes ou vulneráveis ao coronavírus.
O estudo está em curso, mas baseada em dados epidemiológicos apresentados recentemente, Zatz está convencida de que os resistentes são mais frequentes do que os suscetíveis a agravamento.
O problema é que, ainda assim, são milhões os vulneráveis e até o momento não há como identificá-los. Tampouco é fácil encontrar os resistentes porque não há como saber quem foi ou não exposto, devido à baixa testagem no Brasil.
— Os centenários com PCR positivo são resistentes evidentes, assim como jovens sem comorbidades que faleceram. Por isso, os estudamos — afirma Zatz.
Características genéticas e imunológicas influenciam a forma como uma pessoa reage às infecções de forma geral. Isso é conhecido no caso da Aids e da dengue hemorrágica, por exemplo. Os casos de resistência ao HIV estão associados a uma mutação específica no gene CCR5, que bloqueia o vírus.
Mas a Covid-19 parece ser ainda mais complexa, salienta Zatz. Não apenas um, mas um conjunto de genes explicaria o fato de centenários, alguns com comorbidades, além da própria idade avançada, escaparem ilesos do coronavírus. Tampouco a vulnerabilidade estaria associada a um gene só.
Identificar essas características promete revelar mecanismos fundamentais da Covid-19 e formas de combate-la, abrindo caminho para desenvolvimento de novas vacinas e medicamentos. Tem ainda aplicações mais imediatas:
— Queremos entender, por exemplo, a resposta à vacina. Por que algumas pessoas produzem mais anticorpos do que outras, por exemplo — explica.
Além de centenários sobreviventes e jovens que faleceram, a pesquisa investiga mais de 80 nonagenários que se curaram ou sequer manifestaram sintomas de Covid-19 mesmo estando positivos; 100 dos chamados casais discordantes, definidos como aqueles em que um dos cônjuges adoeceu com gravidade ou morreu e o outro nada teve; e gêmeos igualmente expostos ao coronavírus.
O estudo com os jovens que morreram da doença sem ter qualquer comorbidade, com 45 indivíduos até o momento, é realizado em parceria com o grupo de Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Os centenários parecem frágeis, mas são o grupo mais resistente. Aguentam qualquer desaforo do ambiente, diz Zatz. O grupo dela estuda 13 centenários. A meta é, além de sequenciar o genoma deles, multiplicar suas células em laboratório, obter células-tronco e estudar a resposta delas ao Sars-CoV-2, inclusive às variantes.
A senhora Parouhi foi uma das primeiras participantes. Ela nasceu no que hoje é a atual Armênia, mas chegou com 6 anos ao Brasil, fugindo do massacre dos armênios pelos turcos. Seu filho mais novo, o médico João Aris Kouyoumdjian, de 67 anos, conta que a mãe passou fome e muitas dificuldades, mas sempre teve saúde férrea.
— Ela continua muito bem, tem apenas alguns problemas de visão e audição naturais do envelhecimento. Já tomou as duas doses da vacina. Nada a assusta, mas está ansiosa pelo fim da pandemia — diz Kouyoumdjian.
A mãe dele já deu especial contribuição para combater a pandemia ao ceder amostras de sua pele, para extração de células. Outra dos centenários do estudo é uma senhora de 106 anos, que sobreviveu à gripe espanhola (1918/19) e à Covid-19 em 2020.
Há ainda uma senhora de 104 anos que não tem um rim e nem por isso a Covid-19 agravou. Causa ainda mais espanto uma idosa de 114 anos, da Paraíba. Ela faleceu ainda no ano passado de causas não relacionadas à pandemia e era uma das pessoas mais velhas do mundo. Na verdade, segundo Zatz, era a pessoa mais velha a sobreviver à Covid-19.
— Essa senhora é um caso espantoso. Normalmente, as células tiradas da pele para cultivo em laboratório morrem se não forem congeladas em poucas horas. As dela demoraram cinco dias para chegar a São Paulo e não apenas não morreram quanto se mostraram excepcionalmente ativas — conta Zatz.
Numa segunda etapa do trabalho, Zatz planeja ver como os resistentes respondem à vacina.
— Pode ser que tenham uma resposta diferente. Será que eles fazem mais anticorpos mesmo com uma só dose? Isso precisa ser investigado — frisa ela.
Para testar essa possibilidade, o grupo da USP procura fazer uma parceria com o Instituto Butantan, que produz a CoronaVac.
Zatz está animada com a possibilidade de os casos de resistentes serem mais frequentes do que pensavam. Ela diz que não teve dificuldades para encontrar os chamados casais discordantes.
— Ninguém é mais exposto ao vírus do que o cônjuge ou companheiro de alguém infectado. Por isso, é relevante que uma pessoa adoeça ou morra e sua companheira nada tenha. Já fomos procurados por mais de mil pessoas de todo o país nessa situação e os e-mails de interessados em participar do estudo continuam chegando — destaca ela.
A geneticista lembra do caso de um homem de 72 anos, que adoeceu severamente, mas cuja a esposa e a mãe, de 98 anos, que mora com o casal, nada tiveram.
Quase sempre, o cônjuge saudável de um doente grave sequer tem anticorpos. Dos 100 casais analisados, apenas 5% dos cônjuges que não adoeceram apresentaram anticorpos. E dois terços dos o cônjuges que não adoeceram são mulheres.
Impossível esquecer as crianças
Nos jovens que agravam terrivelmente e morrem de Covid-19, mesmo sem comorbidades conhecidas, cientistas especulam que pode haver uma resposta imunológica deficiente controlada por uma configuração genética desfavorável à defesa contra o coronavírus.
O trabalho da equipe integrada por Paulo Saldiva, com Marisa Dolhnikoff e Renata Monteiro, é pioneiro em autópsias não-invasivas de vítimas da Covid-19. Eles buscam nos mortos informações que salvem vidas.
— Nunca é fácil. Impossível se acostumar com autópsias de crianças. Nosso grupo é o que mais publicou estudos com autópsias de covid no mundo, mais de 110 autópsias. É um tipo de estudo trágico e necessário — frisa ele.
Entre o grupo inicial de 45 vítimas jovens de Covid-19 autopsiadas estavam quatro gestantes, dois bebês de mães com Covid-19, seis crianças com menos de 12 anos. Os estudos estão em curso, mas Saldiva adianta que o sequenciamento genético de duas dessas crianças já revelou que não apenas elas não tinham qualquer doença além da Covid-19 como tampouco apresentavam qualquer variação genética conhecida associada à vulnerabilidade.
— Vemos tanta gente adoecer porque na hora em que o coronavírus circula mais acaba por se encontrar com pessoas que têm polimorfismos desfavoráveis. Retomamos as autópsias e estamos fazendo uma espécie de cartografia da Covid-19, ela, aparentemente, tem marcas próprias — diz Saldiva.
Agulha no palheiro
Zatz acrescenta que estudos nos EUA indicaram a existência de pelo menos três genes _ todos do sistema imunológico _ que podem estar associados a uma maior vulnerabilidade. A resistência pode ser ainda mais complexa. Há pistas de que o chamado sistema HLA está envolvido, diz Zatz.
O sistema HLA é crucial nas defesas. É ele que que identifica e reage invasores, como vírus. Mas caçar alterações no HLA é como procurar agulha em palheiro. Seus genes, seis principais e mais de 100 relacionados, estão no cromossomo 6, e há mais de 22.548 alelos (formas como um gene pode se apresentar) conhecidas. Mutações nesses genes estão associadas a uma série de doenças autoimunes, como lúpus e diabetes do tipo 1.
— Esse é um estudo de longo prazo que pode nos ajudar a combater esta e as próximas pandemia — enfatiza Zatz.
Fonte: Paraíba Notícia e o Globo